sábado, 22 de dezembro de 2007

Os amigos, as estações e as razões do amor



As taças: diferentes cores, diferentes formas (Foto: Enio Moraes Júnior)




Enio Moraes Júnior

Para Aristóteles, filósofo grego que viveu nos anos 300 a.C., a amizade é o que há de mais fundamental na existência humana, uma vez que os bens conquistados ao longo da vida dos indivíduos, como o dinheiro e o poder, não poderiam ser compartilhados sem a presença dos amigos. Para ele, a amizade é essencial para a socialização e para a celebração da própria vida.
Também segundo Aristóteles, a amizade implica uma tal deferência humana que exige que o amigo aja em relação ao outro amigo da mesma forma que age em relação a si mesmo. A amizade, nessa concepção, possui um forte teor de responsabilidade em relação ao outro.
Perceber esse sentido e o valor das amizades foi talvez a mais nobre descoberta que pude fazer em São Paulo e talvez o principal aprendizado que tive com os paulistanos – daqui ou de outros lugares do mundo – que aqui conheci.
O musical norte-americano Rent, sucesso da Broadway que foi transformado em filme e está disponível em DVD (Rent / Columbia: EUA, 2005), imortalizou a canção Seasons of Love que, mais que celebrar o amor romântico, canta as verdadeiras amizades encontradas, desencontradas, reencontradas e enfim, vividas em meio a dúvidas, tristezas, doenças, festas e alegrias.
A canção é uma composição de Jonathan Larson e anuncia:

It's time now to sing out
Tho' the story never ends
Let's celebrate
Remember a year in the life of friends
Remember the love

Em português seria algo como:

A hora é agora
Essa história não tem fim
Vamos celebrar
Lembrar um ano na vida dos amigos
Lembrar o amor

Para Aristóteles, a amizade é diferente do amor porque este pode ser sentido também por coisas e objetos, mas amizade, só por gente. E mais: enquanto o amor está associado à afeição e ao desejo, a amizade significa compromisso, o sentimento de compartilhar. São as estações e razões para as amizades, assumir compromisso com gente. É exatamente esse sentimento que em Rent é chamado amor: o amor da alma, a amizade.
Numa cidade como São Paulo, onde as pessoas silenciam-se entre si com os seus MP3, MP4 e iPods, os amigos são uma oportunidade para a vida comunitária, a troca de idéias e solidariedade. Em meio às pedras e vidros, concreto e carros em frenético movimento, sentimentos que socializam, humanizam e permitem compartilhar as conquistas – como bem poderia dizer Aristóteles – continuam a ser um bom antídoto contra os MP3, MP4 e iPods que nas grandes cidades servem para acomodar a trilha sonora de pessoas que correm das pessoas para encontrar a solidão.
Que os sons que São Paulo produz continuem sendo doce aos meus ouvidos. Que em 2008 o Eduardo, o Anchieta, a Tereza, a Alessandra, o Júlio, o Valnei, a Márcia, o Marcos, a Ana, a Adriana, a Gislaine, a Fabiana, a Andréa, o André, o Fernando, o Murilo, a Rita, a Camila, o Miguel, a Valéria, o Ícaro, o Vinícius, a Carla, o João, a Cris, o Adriano, a Sônia, o Paulinho, a Tânia, o Coelho, a Amália, o José, o Abides, a Lícia, a Cristiane, a Lúcia, o Sérgio, a Helena, a Cida, a Ciça, a Rejane, a Loverci, a Clau, o Wagner, o Carlos, o Robson, minha família (todos: os Vieira, os Marinho e os Moraes de todas as gerações) e os demais amigos e parentes - desse e de outros mundos, em especial o André Florêncio e minhas avós Noêmia e Pastora - continuem entoando comigo as canções das estações e das razões do amor e da amizade.
Que no ano que está chegando possamos chorar juntos, celebrar, sorrir e lembrar mais outros anos na vida dos amigos, as amizades e o amor. Um brinde aos meus amigos, às estações e razões para as amizades!

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Globalizações, humanização e responsabilidade profissional


Cadeiras vazias: qual o espaço dos seres humanos na sociedade de consumo global? (Foto: Enio Moraes Júnior)

Enio Moraes Júnior

Segundo a filósofa Monique Canto-Sperber, não podemos falar em globalização como uma espécie de UNIFICAÇÃO do mundo. É necessário que os valores regionais sejam preservados a partir da construção de um MOVIMENTO CRÍTICO que valorize a DIVERSIDADE humana e regional. Para ela, uma efetiva globalização deve implicar um MUNDO COMUM em que as diferentes culturas relacionem-se a partir das suas tradições, não que estejam submetidas a uma cultura dominante. Pouco empolgada com os lucros econômicos e buscando um sentido mais humanista para a globalização, ela observa (BARRET-DUCROCQ, 2004: 50):

Nosso mundo é um mundo onde a pobreza e a miséria constituem o lote de uma parte considerável das populações, mesmo dentro dos países desenvolvidos. Mais que pela ausência de recursos, a miséria se mede pela ausência de perspectivas de futuro ou de oportunidades de ação. (...)
Dispor de meios para transformar recursos em verdadeiras capacidades de agir requer um mínimo de educação, exige viver em um mundo que ofereça reais possibilidades de desenvolvimento de si e supõe que a cultura à qual se pertence tenha podido formar em cada um a faculdade de adaptar-se.

É nesse cenário de contradições entre sentidos humanos e materiais, entre pessoas e coisas, entre empresas e pessoas que os profissionais das diferentes habilitações de Comunicação Social precisam pensar sua atuação. A busca pelo lucro deve caminhar ao lado de uma efetiva responsabilidade social.
A nova configuração mundial implica, assim, desafios para o papel da comunicação e dos seus profissionais. O fluxo informativo, agora mais veloz e dinâmico, assim como as decisões e a produção do capital, tem que corresponder a uma qualificação também do nível de relacionamento entre as diversas instâncias da hierarquia humana envolvidas numa economia global que precisa fazer-se mais solidária. Diante disso, a mídia e os seus profissionais do século XXI, apoiados nas tecnologias digitais, precisam ganhar um novo e único sentido: o do ser humano, respeitando, na sua diversidade, o seu direito à vida com dignidade.
Buscando entender os obstáculos desse caminho, Benjamim Barber (2003) tem usado uma metáfora para discutir a intolerância e o desrespeito à diversidade em duas diferentes esferas. Para ele, no mundo contemporâneo e globalizado, à JIHAD – a busca de uma identidade local (regional) que implica o dever de dominação do outro em nome da aceitação desses valores – opõe-se o McMUNDO – a busca de uma cultura global que implica a dominação do outro em nome da proliferação do capital econômico.
Enquanto a Jihad dissemina MICROGUERRAS LOCAIS, o McMundo acena com uma MACROPAZ GLOBAL. Como resultado desse embate difícil, com uso de armas VIDEOLÓGICAS GLOBAIS e VIDEOLÓGICAS LOCAIS e desrespeito à INTERDEPENDÊNCIA ECOLÓGICA, vença quem vencer, talvez a única coisa que reste seja uma PÓS-DEMOCRACIA.
Tenho defendido (2007A) que na sociedade neotecnológica os conflitos que determinam a comunicação social e o jornalismo como espaço de cidadania não são exatamente retirados da pauta da produção da informação, mas deixam de ser percebidos pela recepção, tomada por uma nova cultura da pressa e da superficialidade: a HIPERCULTURA que, segundo Stephen Bertman (1998: 181), funciona num contínuo abastecimento a curto prazo:

A hipercultura é uma cultura que facilmente se torna maçadora e que rapidamente aturde as pessoas, uma cultura em que o divertimento se transforma e deixa de ser um momento ocasional de distração de pessoas ou de grupos e passa a ser uma forma de vida, que ocupa todos os interstícios entre os períodos de trabalho. Esgotando rapidamente as reservas de energia, uma hipercultura exige constantemente ser abastecida.

Em alguma medida respaldando a vida hiperculturalizada, Manuel Castells (MORAES, 2003) faz uma leitura das implicações da internet para a sociedade contemporânea. Para ele, a internet não é em si uma nova forma de sociedade, mas potencialmente representa e age como um instrumento, um meio de uma nova forma de organização social a que ele denomina SOCIEDADE EM REDE.
Para o autor, a internet não é um projeto político de dominação do capital e da ideologia norte-americana já que desde a sua origem ela foi multinacional e aberta à autogestão. No entanto, a geografia da internet pode ser tomada sob dois pontos de vista: dos usuários – normalmente dispersos no globo – e dos provedores – concentrados nos centros de tecnologia e conhecimento mundiais. Mas de acordo com Castells, a divisão social promovida pela internet não é aquela entre quem tem e quem não tem acesso a ela, mas entre aqueles que têm condições de utilizar o conhecimento que ela disponibiliza para “aprender a aprender” e aqueles que não o têm. A partir daí, na numa nova economia, as relações econômicas mudaram com a internet.
Agora o que se expande não são mais os produtos, característica da produção fordista, mas a volatilidade do capital financeiro. Isso propicia uma nova forma de sociabilidade, não excluindo as formas antigas. A vida em rede sociabiliza preferencialmente laços sociais “fracos” como aqueles entre vizinhos ou conhecidos.
Por outro lado, os movimentos sociais ocupam a internet e globalizam suas demandas, mas “aterrizam” localmente. Isso repercute, segundo Castells, na política. Assim como acontece com os movimentos sociais, a política, ao virtualizar-se, ganha uma dimensão global, mas perde terreno regional e continua a afastar-se do cidadão. A internet é apenas um instrumento a serviço da política, não pode mudá-la, adverte o autor.
Até que ponto os governos podem controlar a internet e, nela, a privacidade de seus cidadãos? Para Castells, ela continua livre. Ao mesmo tempo, para o autor, em um mundo de interação e informação generalizada, urge ser reforçada a credibilidade dos meios de comunicação como a única forma de sobrevivência social da mídia.

Gente e mercado

Pensando a comunicação no contexto mercadológico, Franz-Oliver Giesbert (BARRET-DUCROCQ, 2004) parte dos acontecimentos de 11 de setembro para discutir a informação na sociedade globalizada. Num planeta cada vez com maior oferta de informação, tomada como mercadoria, o autor reflete sobre a necessidade de uma MÃO FRATERNA, de tolerância e respeito humano, na condução e acionamento da comunicação social no planeta.
Aproximando-me do pensamento do autor (2007B), tenho tocado na questão ao propor o conceito de CIBEREXISTÊNCIA apoiando-me no conceito de uma CIDADANIA PLANETÁRIA, a quem têm se referido pensadores como Edgar Morin e Moacir Gadotti. Penso que a dimensão ciber – as novas formas de interação possibilitadas pelas tecnologias digitais – deve nos conduzir à tentativa de valorizar a vida por meio da valorização do ser humano e do planeta.
A socióloga Dominique Scnapper discute a cidadania na era global destacando que a vida política não tem sentido apenas ao ajudar os homens a produzirem riquezas, mas deve, sobretudo, despertar e defender valores humanos.
Scnapper, articulando seu pensamento ao da filósofa Canto-Sperber, entende que nesse caminho há de ser preservada no espaço da vida globalizada uma VONTADE COMUM em que exista um LUGAR POLÍTICO de discussões públicas para o encaminhamento de uma VONTADE POLÍTICA e respeito às LIBERDADES POLÍTICAS. Segundo ela (BARRET-DUCROCQ, 2004: 79), “a política não pode consistir somente em ajudar os homens a produzir riquezas e redistribuí-las aos diversos grupos sociais; ela deve, primeiro e sobretudo, trazer consigo valores e uma vontade comuns”.
No espírito dessas contribuições, o antropólogo Harris Memel-Fotê propõe, analisa e dialoga sobre a possibilidade de o século XXI engendrar uma MUNDIALIZAÇÃO HUMANA. Aproximando-se da crítica política presente no pensamento Barber, da perspectiva humanística presente em Giesbert e denunciando as contradições econômicas e sociais da globalização, ou mundialização, como se refere ele, Memel-Fotê observa (BARRET-DUCROCQ, 2004: 314):

(...) existe outro sentido no qual a mundialização econômica pode ser humana. Sem dúvida ela não é humana naquilo que um contemporâneo denominou “o retorno da cultura recalcada”, retorno que se apresenta ou sob a forma de uma explosão identitária com purificação étnica, prática genocida ou terrorismo (Ruanda, Bósnia), ou sob a forma de integrismo religioso (islamismo na Argélia, no Sudão, no Irã, no Afeganistão, bramanismo e budismo na Índia etc.). Apesar desse caráter mortífero do despertar do recalcado, algo de humano permanece no fundo dessa barbárie: a resistência, a recusa oposta à alienação mercantil e à dominação, duas formas de expressão, uma e outra, da liberdade dos indivíduos e das coletividades e do direito deles à vida.

Resta aos profissionais de comunicação socialmente responsáveis construir esse espaço de respeito e preservação do ser humano diante das desigualdades e desumanidades geradas por um modelo de globalização em que prolifera apenas o capital de alguns poucos grupos em regiões específicas do globo. Cabe a cada um assumir no seu ofício, na profissão que escolheu, a defesa física do planeta em que vivemos e essa defesa é, mais que em qualquer outro momento da história, a defesa do ser humano.
Para isso, é preciso que tenhamos a consciência de que a melhor colaboração que podemos dar ao mundo e ao outro é a fala aberta ao diálogo, não o dogmatismo. E os meios de comunicação e seus profissionais têm também um papel especial na construção desse diálogo. Na era das tecnologias comunicacionais, a internet pode ser um espaço para fóruns de discussões locais, regionais e globais. E, na medida em que o seu uso – tanto do ponto de vista técnico como político – caminhe no sentido de uma sociedade antropolítica, como diz Morin (MORAES, 2003), ela constituirá indivíduos bem educados e bem informados.

Principais referências bibliográficas
BARRET-DUCROCQ (org). Globalização para quem?: uma discussão sobre os rumos da globalização. São Paulo: Futura, 2004.
BARBER, Benjamim. Jihad X McMundo. Rio de janeiro: Record, 2003.
BERTMAN, Stephen. Hipercultura: o preço da pressa. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da terra. Série Brasil Cidadão. São Paulo: Pierópolis, 2000.
MORAES, Denis de (org). Por uma outra comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2003.
MORAES JR., Enio (A). A Hipercultura e os Conflitos do Jornalismo como Espaço de Cidadania. Trabalho apresentado no XXX Congresso Intercom. 2007.
_____ (B). Ciberexistência, Comunicação, Educação. Material apostilado. São Paulo, 2007.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Os direitos humanos e a diversidade na comunicação neotecnológica global (Parte 02)


Enio Moraes Júnior



Segundo o relatório divulgado no início deste ano pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), órgão ligado à ONU, é possível deter o aquecimento global se o processo de redução das emissões for iniciado antes de 2015. De acordo com o documento, para combater o aquecimento, a humanidade terá de diminuir de 50% a 85% as emissões de gás carbônico até a metade deste século.
Ainda que existam algumas ressalvas quanto aos seus aspectos mercantilistas, o Protocolo de Kyoto, um acordo assinado por diversos países em 1997, na cidade de Kyoto, no Japão, traduz muito bem a gravidade das questões climáticas na Terra. Embora haja críticas ao modo mercantil como o Protocolo trata a natureza e o planeta, uma questão tem ficado cada vez mais clara: a emergência e a consolidação daquilo que alguns autores contemporâneos têm chamado de cidadania planetária.
Nesse novo contexto global, a existência humana na Terra é marcada por uma única condição: a vida do próprio planeta. Temos nos deparado diariamente com esse fato nos jornais e as estatísticas e prognósticos de destruição do planeta têm sido tão constantemente anunciados quanto ameaçadoras, ou melhor: responsabilizadoras.
Embora seja na civilização dos gregos e na dos romanos (séculos IX e VIII a.C) que a cidadania desenvolva o importante alicerce da dimensão política, é na Idade Moderna (séculos XIII a XVIII), com o fortalecimento dos Estados-nação, que ela ganha seu contorno mais significativo: a defesa dos direitos humanos e da democracia, em cuja base está a nacionalidade.
Hoje, entretanto, a cidadania passa a ter uma abrangência global, entendida numa perspectiva planetária. No seio dessa concepção está exatamente o entendimento de que qualquer mal que seja feito ao meio ambiente, em qualquer nação ou continente, tem implicações não apenas locais, mas globais; afeta o mundo todo, o planeta.
Exercer, portanto, uma cidadania planetária é defender o planeta e isso pode ser colocado como condição atávica da existência humana acima de toda e qualquer nacionalidade. Essa concepção tem uma relação muito próxima com o conceito de globalização.
A conhecida globalização econômica e suas conseqüências trazem vantagens e desvantagens. Embora persistam a pobreza e uma má e injusta distribuição de renda no planeta, é irrefutável a idéia de que hoje nós acessamos com maior facilidade informações sobre outras regiões do país, sobre países, povos e culturas. Nesse sentido, podemos participar de forma mais articulada – no que diz respeito ao background de informação que temos – de processos ligados à defesa da Terra e do outro. Esse outro, por sua vez, deixa de ser um outro politicamente regionalizado, do mesmo país, e passa a ser um outro planetarizado, o que alguns autores têm chamado de outro-universal.

Ciberexistência e respeito à diversidade
O outro-universal é, por sua vez, todos os outros; a própria diversidade humana. A possibilidade de existirmos, portanto, numa nova esfera e dimensão na vida terrena, de constituirmos paralelamente à vida social cotidiana, uma sociedade em rede, com novas formas de socialização, abre os precedentes para um novo olhar e conhecimento sobre esse outro-universal, sobre a diversidade humana e sobre o planeta.
É especialmente curioso que a palavra ciberexistência seja formada pelo prefixo CIBER, em inglês CYBER, que significa “piloto, dirigente” e EXISTÊNCIA, existir. Isso pode indicar que ciberexistir significa dirigir a própria vida ou pelo menos ter em mãos os instrumentos que possibilitem isso de forma mais efetiva. Assim, ciberexistir abre novos precedentes para, a partir das tecnologias, especialmente da internet, trazer a vida a uma nova dimensão informacional e cognitiva das pessoas e do mundo. Ciberexistir, portanto, deve implicar exatamente a defesa dessa condição humana que começa com a defesa da própria vida do planeta.
A ciberexistência é um conceito no qual tenho pensado para entender a vida em sua dimensão contemporânea e neotecnológica. Tenho apoiado-me especialmente em dois autores. Um deles é Muniz Sodré, que no livro Antropológica do Espelho reflete sobre uma nova dimensão humana trazida pelas mídias – o bios midiático. Segundo o autor, nas sociedades contemporâneas globalizadas a mídia assumiu um poder de intensidade tal que é por meio dela que os indivíduos relacionam-se – vinculam-se – no espaço social.
Essa vinculação, como observa o outro autor, Manuel Castells, em Sociedade em Rede, traz-nos a uma nova forma de vida social na qual estamos enredados. Um ponto importante no pensamento do autor é que a sociedade em rede é uma forma de sociedade que construímos e que vivenciamos a partir da sociedade real, física.
A ciberexistência “bios midiatizada e enredada” de hoje é, portanto, produto da existência física cotidiana. Não há sentido, portanto, em imaginarmos e preservarmos uma vida ciber, sem preservarmos a vida física do e no planeta. Para ciberexistirmos, midiatizados e em rede, precisamos preservar a nossa própria existência terrena. Portanto, é função do ciberexistente, a defesa da sua própria condição humana de existência. E por essa defesa passa, irrefutavelmente, a defesa do planeta.
É importante darmos à educação e à comunicação o seu inestimável papel nos processos de socialização humana e sustentabilidade planetária. O homem sem a intelectualidade para compreender a complexidade do mundo é um homem que não compreende também a necessidade de defesa do planeta e da vida. Esse homem forma-se exatamente na escola e nos processos midiáticos. Os demais processos, como a participação política e a intervenção no mundo através do trabalho são – parodiando uma reflexão do canadense Marshall McLuhan – extensões do que somos, e o que somos é, fundamentalmente, extensão da educação e da informação que temos.
Tudo, absolutamente tudo que dizemos, que escrevemos, são pontos de vista. Então, o conhecimento deve ser permanente, em perspectiva, um “vir a ser” constante. Para isso, é preciso que tenhamos a consciência de que a melhor colaboração que podemos dar ao outro e ao mundo é a fala aberta ao diálogo, e não o dogmatismo.
A mídia e a comunicação neotecnológica têm também um papel especial na construção do diálogo fundamentado no respeito à diversidade humana. Na era das tecnologias comunicacionais, a internet deve ser um espaço para fóruns de discussões locais, regionais e globais. E, na medida em que o seu uso – tanto do ponto de vista técnico como político – caminhe no sentido de uma democratização, de realização de uma ciberdemocracia constituída por indivíduos formalmente educados e bem informados.
A dimensão ciber deve nos conduzia à tentativa de valorizar a vida por meio da valorização do ser humano e do planeta. A ciberexistência só tem sentido se pensarmos na existência. As novas tecnologias não podem ser pensadas sem pensarmos também na própria vida humana e na vida do planeta. A educação e a comunicação para uma cidadania planetária são o caminho para potencializarmos esse engenho humano na defesa do próprio homem e da sua diversidade.

Referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
_____. Internet e sociedade em rede. IN: MORAES, Denis de (org). Por uma Outra Comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2003.
LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
_____. Pela ciberdemocracia. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1964.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.
_____. A ignorância da diversidade. Coleção ‘A invenção do contemporâneo’. Série ‘As novas ignorâncias’. São Paulo: Cultura Marcas, 2006. 1 DVD. 48 min.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Os direitos humanos e a diversidade na comunicação neotecnológica global (Parte 01)

Enio Moraes Júnior

As novas tecnologias de comunicação implicam novas formas de ser e estar no mundo, tem ponderado o filósofo Pierre Lévy (2002). Mas o fato é que essas mudanças trazem em si um projeto – e ao mesmo tempo uma conseqüência política – em relação à qual não podemos fechar os olhos: a globalização.
Como reflexo da globalização, as fronteiras mundiais estão mais tênues e as pessoas tendem, em certa medida, a estarem mais próximas. Segundo Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do grupo Gerdau (SIQUEIRA, 2007: B22):

A Internet impõe uma rapidez jamais sonhada em nossas decisões. Temos que resolver tudo em minutos ou mesmo em segundos. Vivemos hoje um processo executivo on line que explica, em grande parte, o grande aumento de produtividade ocorrido no mundo nos últimos anos.

Menos empolgada com os lucros, entendendo o fenômeno global como algo ainda em processo, a filósofa Monique Canto-Sperber (2004: 50) reflete:

Nosso mundo é antes de mais nada um mundo onde a pobreza e a miséria constituem o lote de uma parte considerável das populações, mesmo dentro dos países desenvolvidos. Mais que pela ausência de recursos, a miséria se mede pela ausência de perspectivas de futuro ou de oportunidades de ação. (...)
Dispor de meios para transformar recursos em verdadeiras capacidades de agir requer um mínimo de educação, exige viver em um mundo que ofereça reais possibilidades de desenvolvimento de si e supõe que a cultura à qual se pertence tenha podido formar em cada um a faculdade de adaptar-se.


É nesse cenário de contradições entre sentidos humanos e materiais, entre pessoas e coisas que a comunicação social, que agora funciona articulada às promessas e efeitos das novas teconolgias de comunicação, precisa repensar seus limites e suas responsabilidades. O fluxo informativo, agora mais veloz e dinâmico, assim como as decisões e a produção do capital, têm que corresponder a uma qualificação também do nível de relacionamento humano.
Apoiada nas tecnologias digitais, a comunicação social precisa estabelecer uma direção não apenas no sentido “unificador” de padrões e de possibilidades, mas também registrar em si a diversidade com a marca de “união” plasmada pelo respeito, pela tolerância e pelo amor humano em todas as suas dimensões.
É esse eixo que tem sido ocupado por organizações não-governamentais que lutam em defesa dos direitos mais nobres que há sobre este planeta: os direitos humanos.
Organizações como o Nuances (http://www.nuances.com.br/), grupo brasileiro pela defesa da liberdade de expressão sexual fundado em Porto Alegre em 1991, e o Mujeres Hoy (http://www.mujereshoy.com/), que agrega mulheres do mundo todo na defesa de seus direitos, são referências a serem admiradas e citadas como espaços que se colocam globalmente com um posicionamento político firme e com propriedade na defesa da diversidade e dos direitos humanos por meio dos instrumentos da comunicação neotecnológica.
Assim, a internet passa a ser um espaço para fóruns de discussões internacionais e, na medida em que seu uso – tanto do ponto de vista técnico como político – caminhe no sentido de uma democratização, de realização da ciberdemocracia pensada por Lévy.

Referências bibliográficas
CANTO-SPERBER, Monique. A globalização com ou sem valores. IN: BARRET-DUCROCQ (org). Globalização para quem?: uma discussão sobre os rumos da globalização. São Paulo: Futura, 2004. 50-58 pp.
LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. Tradução Alexandre Emílio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
SIQUEIRA, Ethevaldo. Decisões on line revolucionam a produtividade. O Estado de S. Paulo. Economia, pg. B22. Domingo, 1º de julho de 2007.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Novos textos, novas extensões. Novo homem?

Enio Moraes Júnior

Gosto da palavra. Gosto especialmente da palavra escrita. Plagiando o pensador canadense Marshall McLuhan (1964), que nos anos 60 disse que os meios de comunicação são extensões do homem, costumo dizer que as nossas palavras são a exata extensão do que somos e do que conhecemos.
Sou jornalista e professor de Comunicação Social há mais de dez anos e sempre tive especial predileção pelas teorias da comunicação e do jornalismo. Num país onde professores de jornalismo, por razões pessoais ou exigências profissionais, decidem entre a carreira acadêmica e o batente, ironicamente fui levado ao batente da reportagem como uma exigência das teorias acadêmicas.
Por um lado porque comecei a preocupar-me em desenvolver um modo mais atraente de chamar a atenção dos alunos para o que eu estava propondo. Na sociedade da técnica e da imagem, o aluno de comunicação social (e, ao que parece, das outras áreas também) está normalmente mais inclinado com o conteúdo prático do curso e um caminho a levá-lo a teorizar, a refletir, é colocá-lo em contato com a dinâmica da vida profissional e com a própria produção.
Comecei a utilizar conceitos e reflexões como indústria cultural (Adorno e Horkheimer), sociedade do espetáculo (Debord) e jornalismo como "modelo de publicidade" (Chomsky) para dissecar e a interpretar matérias jornalísticas de jornais, revistas e sites.
Por conta dessa forma de trabalho, entusiasmei-me com a prática da reportagem e, embora a vida acadêmica seja minha prioridade, há alguns anos estou no mercado também como repórter e revisor. No meu caso, em vez de atrapalhar, esse caminho tem ajudado na vida acadêmica.

O texto jornalístico
Uma das coisas mais instigantes que tenho feito nos últimos dois anos é produto dessa experiência. Tenho me preocupado, a partir das teorias e do trabalho de reportagem, com os rumos do texto jornalístico diante do advento das novas tecnologias de comunicação.
Na primeira quinzena de junho, São Paulo foi sede do MediaOn, I Seminário Mundial de Jornalismo On Line, cuja abertura contou com nomes como Paulo Henrique Amorim e Michael Rogers, do grupo New York Times.
Uma das indicações dos painelistas do evento foi que ainda estamos muito longe de prospectar o que realmente viremos a ser nos próximos dez ou quinze anos. A convergência midiática praticamente ainda não começou e estamos convivendo apenas com a primeira geração que cresceu com a internet.
O filósofo tunisiano Pierre Lévy (2003) disse há pouco tempo que as novas tecnologias de comunicação implicam novas formas de ser e estar no mundo. Considerando que elas implicam também novas formas de comunicação, são também novas formas de extensão.
O que tem chamado minha atenção nesses últimos tempos e instigado meu trabalho é exatamente apreender o sentido do texto jornalístico na era neotecnológica.
Mas acho que a palavra, falada ou escrita, continuará a existir e uma lição de Graciliano Ramos ainda ecoará por muito tempo pelas redes (NERY, [s.d]):

[...] deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa seja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso: a palavra foi feita para dizer.

Embora estejamos entrando em um mundo de novos significados, de novos textos e de novas extensões, estamos criando novos homens? Penso que sim. Mas penso também que a palavra, as teorias e o jornalismo, tríade de que tanto gosto, deve permanecer num esforço contínuo para que o homem continue humano.

Referências bibliográficas
LÉVY, Pierre. Pela Ciberdemocracia. In: MORAES, Denis de (org). Por uma outra comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2003.
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1964.
NERY, Alfredina. Coesão e coerência. [s.d]. Disponível em: Acessado em 15 de outubro de 2005

terça-feira, 15 de maio de 2007

Linhas para pensar o Jornalismo

Mosteiro de São Bento (ao fundo), onde o Papa esteve hospedado em São Paulo (Foto: Enio Moraes Júnior)

Enio Moraes Júnior

A palavra jornalismo vem do italiano giornale, que nos remete à palavra “jornada”. Assim, o jornalismo traz as informações de uma jornada (um dia, um período), úteis à vida em sociedade. Ele está, portanto, associado a um “instinto de percepção” (KOVACH; ROSENSTIEL) dos indivíduos, capaz de tornar as pessoas mais próximas.
Por sua vez, a notícia (news), a novidade, aquilo que as pessoas desconhecem é, assim, a essência do jornalismo. Ele tem sentido na medida em que acrescenta informações capazes de fazer as pessoas mobilizarem-se em função do bem comum e da vida em sociedade.
Ao trazer o novo, o jornalismo não espelha desinteressadamente a realidade. Ao contrário, ele a reconstrói. Por isso, o jornalismo não é imparcial nem objetivo como propunha a teoria do espelho que surgiu no século XIX para explicá-lo como “espelho” da realidade. Ao contrário, sua essência é a construção dos fatos (TRAQUINA).
Aliás, jornalismo é fundamentalmente interesse, seja do jornalista ou da empresa. No entanto, ele só tem sentido social se agendar – teoria do agendamento – informações que têm por base os direitos humanos, a democracia e a cidadania. Fora disso, há espetáculo ou demagogia da objetividade e da imparcialidade, não mais jornalismo. Como adverte o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.
Os estudos contemporâneos têm trazido suas colaborações para o jornalismo atual face à presença das novas tecnologias de comunicação. Muniz Sodré (2002; 2003) nos fala que a comunicação contemporânea está a favor de uma antropotécnica política. A partir daí, o jornalismo pode ser interpretado como uma técnica de dominação política do homem que implica numa neobarbárie, forma de dominação não mais por meio da morte do corpo, da uso da força física, como pressupõe a barbárie, mas dominação da alma.
Para Barber (2003), a privatopia – a privatização dos sonhos da Utopia a que se referia Morus em seu clássico livro – é uma das provas desse processo. Sobre ela atua uma espécie de videologia em que a imagem é colocada, em si, como ideologia. Tudo isso, para Bertman (1998) se torna possível numa hipercultura, entendida como a cultura da pressa, do descartável, do raso.
Por outro lado, alguns autores têm se mostrado otimistas como as possibilidades trazidas pelas novas tecnologias para a comunicação social e o jornalismo. Empolgado com a possibilidade dessas teconolgias engendrarem uma nova forma de democracia, Lévy (2000; 2003) nos fala de uma possível ciberdemocracia. Para Morin (2000; 2003), esse talvez seja o caminho de uma antropolítica – a substituição da política da barbárie e do lucro por uma política da humanidade – que pode, finalmente, realizar um civismo planetário, constituindo uma cidadania global.

O Papa e o jornalismo

Na grande mídia brasileira, o agendamento da visita do Papa às cidades de São Paulo e Aparecida (maio de 2007) mostrou a atuação de uma imprensa que reproduz uma antropotécnica neobárbara de dominação de uma minoria de brancos e ricos (e católicos) sobre uma maioria de negros e pobres. As imagens, assim como os shoppings, confirmam o espaço (público e irrestrito) da igreja como uma privatopia e reforçam as performances videológicas da dominação. Ao mesmo tempo, a abundância de informação, o acompanhamento simultâneo das ações de Bento XVI pela televisão e pela internet confirmam o jornalismo a serviço de uma sociedade hiperculturalizada em que a informação é apressada, rasa e espetacular.
Por outro lado, os acessos, comentários e descontentamentos com a cobertura na internet – em blogs ou espaços alternativos – reforçam a perspectiva de uma ciberdemocracia, em que a participação social e a opinião pública podem destoar das significações trazidas pela grande mídia. Este aspecto reafirma a possibilidade de uma antropolítica, a partir dos meios de comunicação, levando-nos a acreditar que somente a descentralização da produção da informação e a educação para a cidadania podem levar o jornalismo ao cumprimento do seu papel com um civismo planetário.

Referências bibliográficas
BERTMAN, Stephen. Hipercultura. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. 10º ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
KOVACH, Bill; ROSENSTIEL. Elementos do jornalismo São Paulo: Geração Editorial, 2004.
LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
_____. Pela ciberdemocracia. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
BABER, Benjamim. Cultura McWorld. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
_____. Por uma mundialização plural. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
SODRÉ, Muniz, Antropológica do Espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.
_____. Globalização e neobarbárie. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
TRAQUINA, Nelson. O Estudo do Jornalismo no Século XX. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Balas não matam, quem mata são pessoas

Enio Moraes Júnior e Murilo Jardelino

Bala perdida mata menina de 12 anos no Rio: Alana Ezequiel foi baleada durante operação da PM após deixar irmã na creche; 2 jovens suspeitos de tráfico morreram na ação", traz o caderno Cotidiano da versão digital da Folha de S.Paulo, de 06 de março.
"Bala perdida mata mulher em São Paulo: vendedora foi atingida durante perseguição de PMs a dois jovens que iriam assaltar banco; é a 5ª vítima em 10 dias", informa-se na página 4 do caderno Metrópole do jornal O Estado de S.Paulo, de 9 de março.
Falar em "bala perdida" soa muito eufemístico. No futebol diríamos que uma "bola perdida" é uma jogada errada, obviamente cometida por alguém e com conseqüências para o placar final da partida. No mínimo, o artilheiro deixou de marcar um gol. Além disso, seja um escanteio ou qualquer outra jogada, uma bola perdida por um time é uma bola ganha por outro. Assim, alguém assume a responsabilidade por essa jogada. Afinal é uma disputa esportiva, muitas vezes exacerbada. No caso das balas perdidas, no entanto, a questão é mais séria, alguém também dispara a bala.
O problema da violência não é apenas uma questão de que pessoas estão morrendo, mas também de pessoas que estão matando. Esse apagamento refrata-se no discurso – hegemônico – dos que defendem a redução da maioridade penal e o rigor nas apurações de homicídios, muitas vezes encampado pela mídia nacional; deixa incompletas as discussões sobre violência e esconde que muitas crianças e adultos que hoje matam são produto de uma sociedade que não consegue pensar-se de forma ampla, democrática. Como afirma Marilena Chauí (2000: 564):

Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

Para a autora, a sociedade brasileira é extremamente segregacionista. Se, por um lado, nos choca o absurdo das mortes por balas perdidas, por outro, deveríamos nos chocar e nos preocupar também com as mãos que seguram essas armas e discutir nossa responsabilidade nesses episódios. Mas a abertura da matéria sobre Alana, a menina de 12 anos morta no Rio, acentua os preconceitos de uma população que se comove apenas com um dos lados da questão:

Uma menina de 12 anos foi morta ontem no morro dos Macacos, em Vila Isabel (zona norte do Rio), atingida por uma bala perdida durante operação da Polícia Militar. Outros dois adolescentes de 16 anos, apontados pela polícia como criminosos, também foram mortos. (GRIFOS NOSSOS)

Considerando o fenômeno da designação, apontada por Rajagopalan (2003: 84), podem-se fazer algumas conjecturas. Segundo o autor:

Sabemos que toda notícia, toda reportagem jornalística, começa com um ato de designação, de nomeação. Aliás, a própria gramática tradicional nos ensina que é preciso primeiro identificar o sujeito da frase para então dizer algo a respeito ou, equivalentemente, predicar alguma coisa sobre o sujeito já identificado.(...)É, no entanto, no uso dos nomes próprios – ou, melhor dizendo, na fabricação de novos termos de designação para se referir às personagens novas que surgem no cenário e aos acontecimentos novos que capturam a atenção dos leitores – que o discurso jornalístico imprime seu ponto de vista.

Na matéria da Folha, a grande tragédia é que a menina foi morta. E quanto aos outros adolescentes? "Também foram mortos". E daí? Isso é natural, normal? É aceitável só porque eles estavam armados ou porque a própria designação – "criminosos" – já os incrimina?
As notícias que tomamos como referência são apenas parte de muitos, muitíssimos outros casos. E certamente um dos problemas centrais dos enunciados jornalísticos seja designar reforçando preconceitos, trazendo à tona a carga ideológica da severa divisão de classes, esquecendo alguns princípios da cidadania e da democracia por que deve orientar-se o jornalismo.

Além das balas - Esse tipo de designação, que também encerra em si uma forma de violência, uma espécie de violência de caráter lingüístico, é freqüente em outros momentos da cobertura policial. Nas últimas notícias envolvendo o PCC – Primeiro Comando da Capital –, de São Paulo, a grande imprensa não se refere mais à sigla, mas tem utilizado expressões como "facção criminosa", uma clara tentativa de não reforçar – por meio da designação – a marca e a força que o grupo lamentavelmente conquistou. Ao mesmo tempo, os seus integrantes são sempre designados como bandidos, criminosos, uma estratégia para restringir o grupo àqueles que estão encarcerados.
Por outro lado, políticos, empresários e celebridades sempre são "acusados". Mesmo quando a quase sempre morosa Justiça sentencia-os, eles raramente chegam a ser designados como criminosos. Retomando a avaliação sobre o caráter segregacionista da nossa sociedade apontado por Chauí, fica claro que as designações reforçam o autoritarismo e a violência da nossa sociedade.
Há anos a imprensa nacional vem registrando mortes, assassinatos e homicídios na cena urbana brasileira. Segundo o programa semanal Fantástico, da Rede Globo, 170 pessoas foram atingidas por bala perdida na região metropolitana do Rio de Janeiro em 2006, implicando em 44 mortes. Também segundo a imprensa, até o final de março deste ano, foram mais de 30 vítimas de bala perdida no Rio, sete fatais.
Se por um lado está em dia com os registros, o jornalismo que se seduz por números, pânico e espetáculo tem muitas vezes deixado de problematizar que não existem, de fato, balas perdidas e que balas não matam, quem mata são pessoas.
Ao preferir preencher o argumento "agente" do verbo matar com o argumento "instrumento", aquilo de que um agente se serve para realizar algo, ou seja, ao deslocar para a posição de sujeito sintático da oração esse instrumento – bala perdida – produz-se o apagamento a que nos referimos anteriormente.
Isto é, o que a imprensa tem deixado de problematizar é o fato de nós, brasileiros, por negligência, comodismo ou omissão, estarmos segurando as mãos das crianças e jovens que disparam as balas que matam. Assim, a metonímia da bala assassina serve apenas para eximir o Estado de responsabilidades que são suas e, finalmente, para confortavelmente eximir a nós, brasileiros, maiores, informados, cidadãos, de responsabilidades que são nossas.

Matérias citadas
NOGUEIRA, Ítalo. Bala perdida mata menina de 12 anos no Rio. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo. Caderno Cotidiano. 06 de março de 2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0603200708.htm Acessado em: 06 de março de 2007.
DECAUAZLLIQUÁ, José. Bala perdida mata mulher em São Paulo. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Metrópole, pg. 04. São Paulo, 09 de março de 2007.
Bibliografia

Referência bibliográfica
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia: São Paulo: Ática, 2000.
RAJAGOPALAN, K.. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Um corte de arrepiar...

Enio Moraes Júnior

Quem gostou do clima mordaz de O Quarto Poder (EUA,1998), com as artimanhas de um Dustin Hoffman muito mal intencionado na pele do jornalista Max Brackett, certamente vai gostar muito mais de O Corte (Bélgica, Espanha, França: 2005). Desta vez, a crítica política do diretor Costa-Gavras não recai sobre o jornalismo ou outra profissão, mas dirige-se ao mundo do trabalho, ou melhor, do desemprego.
Em O Corte, a questão da concorrência, das neuroses e da solidão no mundo dos negócios atinge um grau máximo e inquietante. José Garcia é Bruno, um ex-funcionário do alto escalão do ramo de papéis. Depois de passar dois anos procurando, sem êxito, voltar ao mercado de trabalho, o personagem quarentão, casado, pai de dois filhos adolescentes, sente-se preterido em relação a concorrentes mais novos ou potencialmente mais preparados que ele e encontra uma saída para o seu problema: matá-los.
Enquanto mata, Bruno desfila o corte irrepreensível dos ternos que usa e permanece insuspeito, até mesmo quando engana a polícia – com o mais fino cinismo – para esconder os roubos de equipamento de informática praticados pelo filho mais velho... Os gregos, que criaram as bases da democracia moderna, ficariam de cabelo em pé ao ver o rumo assustador e mesquinho que tomou a vida privada em detrimento da vida pública.
Para uma geração que passou a adolescência tendo pesadelos e arrepios com os cortes de filmes como Pânico e Sexta-feira 13, eis que Costa-Gavras mostra que não é nada disso. O verdadeiro corte de O Corte é muito mais que uma ficção capaz de assustar crianças. Para a geração atual de adultos, os abomináveis Freddie Krueger e Jason foram substituídos pela dilaceração da alma ao deixá-la perturbada com os rumos que a vida real tem tomado nestes tempos de famigerada globalização.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Educação cidadã: Um caminho para ser jornalista

Enio Moraes Júnior
"Vale a pena ser jornalista?". Deparei com este título num artigo escrito por Fernando Evangelista na edição de dezembro da revista Caros Amigos. Depois do relato de diversas circunstâncias que colocaram em xeque as suas certezas a respeito da profissão, o autor concluiu, enfático:

Vale (a pena) se tivermos ânimo para ultrapassar as fronteiras proibidas, fronteiras bloqueadas pela censura, pela ignorância, pela mentira. Vale ser tivermos os olhos bem atentos, para ver o delicado, o diferente, o invisível. É preciso coragem para se comprometer, para dizer o que se vê e o que se sente, sem medos nem manuais.

Penso que a educação, a escola e a formação profissional têm um papel fundamental para fazer valer a pena ser jornalista, ou seja, para ultrapassar as fronteiras da desinformação e abrir os olhos para as crueldades e arbitrariedades que vêm sendo cometidas contra seres humanos em nome do capital. Em outras palavras, penso que a formação de jornalistas cidadãos comprometidos com cidadãos seja o ponto de partida para valer a pena ser jornalista.
Num mundo globalizado, de alto desenvolvimento tecnológico, mas que ainda tem muito que aprender e implementar no que diz respeito às relações humanas, pensar a educação é desenvolver um sentimento de cidadania e alteridade. Como observa Gilberto Dupas (2001: 123):

(...) é preciso buscar condições para que uma nova hegemonia mundial, que inclua mas não constranja o capital, possa construir um mundo melhor, utilizando-se dos avanços da ciência em benefício da grande maioria de seus cidadãos.

Assim, é importante que as escolas de Jornalismo tenham como parte do seu projeto pedagógico o estímulo ao diálogo, à troca e a uma visão holística do aluno. É imprescindível como forma de sobrepujança do humano ao capital uma formação comprometida com a cidadania centrada "na pessoa" do estudante, como observa Carl Rogers (1973), e responsabilizando politicamente o educando, como diz Paulo Freire (1987).
Na formação profissional do jornalista, a convivência democrática com a diferença, com pontos de vista díspares (seja de autores, professores ou colegas), complementares e inquietantes e, ao mesmo tempo, o exercício diário de lidar responsavelmente para si e para o outro (seja a fonte de informação, seja o público) com a diversidade, são elementos importantes para uma conduta profissional cidadã. No entanto, esse resultado só será conseguido se a cidadania for discutida – e praticada – na escola; na formação do jornalista.

Jornalismo e novas tecnologias

Embora a formação curricular do jornalista seja importante para a apreensão do conceito de cidadania por fundamentá-lo teoricamente, só cidadãos e espaços cidadãos formam, de fato, cidadãos. Currículos, professores e práticas laboratoriais que não abram o aluno para o diálogo com as diferenças e a realização de suas potencialidades dificilmente conseguirão formar jornalistas comprometidos com os direitos humanos, com a democracia, com ética e com a responsabilidade cidadã da profissão.
Assim, ao pensarmos um modelo de formação para o jornalista do século 21, que inevitavelmente terá como instrumentos profissionais as novas tecnologias do mundo globalizado, não devemos apenas nos preocupar com o currículo, mas também com a relação do discente com o mundo acadêmico, com o docente e, principalmente, com a construção de sujeitos autônomos.
Postular a presença da cidadania na formação do jornalista neste novo momento da ordem econômica mundial significa estimular a reflexão, a revisão e a reestruturação de valores democráticos. Talvez possamos pensar uma formação em que o jornalismo tenha um espaço amplo a ocupar no contexto da ciberdemocracia, como propõe Lévy, (2003); na efetivação de um mundo em que o poder (de poucos) seja substituído pela potência (de muitos).
É neste sentido que Gadotti (2000) estabelece também as suas reflexões sobre educação. Para ele, neste novo milênio deve-se ter em vista uma cidadania não apenas nacional, baseada no conceito de Estado-nação. Educar significa, sobretudo, preocupar-se com uma cidadania planetária em que os indivíduos não mais podem ser vistos como parte de ‘blocos’, mas como pessoas que necessitam estabelecer laços de colaboração em nome da sobrevivência do próprio planeta.

Refletir sobre a formação que deve ser proposta ao estudante de jornalismo é pensar, junto com ele, que tipo de mundo se quer para os próximos anos e se queremos, de fato, o jornalismo como um elemento integrador de uma comunidade global e democrática. A partir daí, formando cidadãos que estejam a serviço de cidadãos, a educação e a escola estarão dando a sua contribuição para que valha a pena ser jornalista.
O caminho é árduo, mas uma educação cidadã é também um trajeto possível e necessário para um mundo mais justo e mais humano, mesmo que a lógica desumana do capital e sua ideologia não o queiram. Como concluiu Evangelista, "Só vale a pena ser jornalista se for – como cantou Torquato Neto – para ‘desafinar o coro dos contentes’."

Referências bibliográficas
DUPAS, Gilberto. Ética e Poder na Sociedade da Informação. 2ª ed. São Paulo: Unesp, 2001.
EVANGELISTA, Fernando. Vale a pena ser jornalista? Caros Amigos. Ano X. Número 117, dezembro de 2006. P. 17.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. Série Brasil Cidadão. São Paulo: Pierópolis, 2000.
PIERRE, Lévy. Pela Ciberdemocracia. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record, 2003.
ROGERS, Carl R. Tornar-se Pessoa. Lisboa: Moraes Editores (Martins Fontes), 1973.

sábado, 13 de janeiro de 2007

O Chá da diversidade dos sonhos

Enio Moraes Júnior

Você já ouviu alguma coisa do grupo pernambucano Chá de Zabumba? Pois eu já, e garanto: para quem gosta, é um dos melhores grupos de forró contemporâneo. No mais recente trabalho, Pra Sambar um Forrozinho, bem mais que música, os integrantes do grupo fazem uma verdadeira louvação à cultura nordestina, de raiz. Como eles mesmos afirmam, “a banda apresenta um jeito próprio de fazer forró, valorizando a tradição e flertando com a inovação”.
Talvez seja exatamente esse flerte com o futuro, sem deixar de trazer as marcas do passado, a grande marca da banda. Em época de globalização, viva o global!, mas que sobreviva e viva também o regional.
Teóricos e pensadores da globalização como Pierre Lévy e Jesus Martín-Barbero têm observado que o século XXI nos aguarda mais abertos, mais diversos, mas não como um todo sem base, sem vida, e sim com as peculiaridades das nossas raízes. É exatamente esta sacada que está presente, reluzente e quente no Chá.
No calor de Pra Sambar um Forrozinho, que é o segundo CD do grupo, a canção Sambastral é uma viagem, talvez o gole que deixa mais claro o espírito da banda: “Remexendo entre as estrelas tanto faz para cima ou para baixo / Eu sei: quem samba na terra também samba no espaço”. Mas no conjunto, o CD é uma reverência à alegria e ao amor que têm como matriz valores nordestinos, “um-não-sei-quê” de afeto, simplicidade e religiosidade.
Além de tocarem projetos sociais e culturais, como o Batuque Book, que prevê a edição de livros-CD-ROMs com música tradicional de Pernambuco, o grupo já está preparando um novo trabalho. Vamos torcer para que no terceiro chá, que está em fase de produção, Climério de Oliveira, Clima (voz, violão), Cleyton Coquinho (zabumba, vocal), Adriano Sargaço (triângulo, guitarra, vocal), Tarcísio Resende (percussão, vocal) e os músicos Eudes Ciriano (baixo, vocal) e Manuelzinho (sanfona) conservem o calor e o espírito de Pra Sambar um Forrozinho, de 2004, e VamoVadiá, de 2002.
Conheci o Chá há poucos dias, casualmente, numa viagem de ônibus Jequié (BA) – Aracaju (SE), por meio de uma menina que tem na cor da pele a diversidade dos sonhos do mundo, a Hosana, que faz a divulgação do grupo e entregou-me um CD. Presente dela para mim, do grupo para o público, de Pernambuco para o Brasil.
Chá, quando quiser zabumbar, é só chegar com o bule que eu chego com as xícaras para compartilhar a diversidade dos sonhos do mundo que o grupo também traz na alma da música que faz.
(Para maiores goles do Chá: www.chadezabumba.com).