quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Opinião Pública

Enio Moraes Júnior

Num ensaio em que tenta pensar uma resposta para a sutil pergunta "para onde vai o mundo?", Edgar Morin utiliza seu pensamento complexo para nos fazer entender que o futuro não está só no futuro. Ele é uma consequência do passado, do presente e também das próprias prerrogativas que se tem em relação a esse futuro:

(...) o jogo do vir a ser é uma prodigiosa compelxidade. A história inova, deriva, desorganiza-se. Ela muda de trilho, descarrila-se: a contracorrente suscitada por uma corrente se mescla com a corrente, e o descarrilador tornase a corrente. A evolução é deriva, transgressão, criação; é feita de rupturas, perturbações, crises (MORIN, 2010: 16).

Qual será o futuro do Brasil? No final dos anos 60, Arnaldo Jabor traçou um importante e irretocável retrato da classe média carioca que pode nos ajudar a pensar o que seremos amanhã com base no que fomos ontem, do que somos hoje e do que pensamos ontem sobre o que seríamos amanhã, hoje.
A Opinião Pública, atualíssimo, é de 1967. E se não nos ajuda a compreender o passado, o presente nem a pensar sobre como será o futuro, nos ajuda a pensar sobre o que somos. Como diz Morin:



"Cada qual, em seu aqui e agora, sente-se muito distante da Humanidade, noção abstrata que se dilui no alures e no vir a ser" (MORIN, 2010: 55).

Referências
JABOR, Arnaldo (dir.). A Opinião Pública. Documentário. 114 minutos. Rio de Janeiro: Versatil, 1967.
MORIN, Edgar. Para Onde Vai o Mundo?. Petrópolis: Vozes, 2010.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Entrevista: As várias dimensões da formação profissional

Texto e foto: Enio Moraes Júnior
Edição final: Jornal da USP

Formosinho:
"Educação para as mídias é parte importante da educação atual"

João Formosinho é professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho, em Portugal. Nesse país preside o Conselho Científico Pedagógico de Formação Contínua de Professores e é membro do Conselho Nacional de Educação. Com um destacado trabalho na área de educação da infância, Formosinho tem dividido, com a esposa, a também professora Júlia Oliveira Formosinho, a coordenação do Mestrado em Educação de Infância da Universidade do Minho e a presidência da Associação Criança.
Doutor em Administração Escolar pela Universidade de Londres, Formosinho tem também pesquisas e trabalhos publicados nas áreas de organização escolar, formação de professores e currículos. Nesta entrevista, ele fala sobre universidade e educação superior. Para o autor, que em junho deste ano foi congratulado pelo presidente da República de Portugal, Cavaco Silva, Comendador da Ordem de Instrução Pública, honra recebida por sua colaboração para a educação em seu país, a formação acadêmica deve enfatizar dimensões éticas e humanas. Além disso, não há como a universidade formar superprofissionais. “Nas organizações complexas, os profissionais têm de saber atuar, mas elas também têm que assumir responsabilidades”, alerta.

Jornal da USP – Existe um conceito no seu pensamento que é a escola de massas, marcada pela obrigatoriedade escolar e pela promessa de status e ascensão social. A universidade hoje é também uma escola de massas?

João Formosinho – Sim. Acho que estamos perante uma universidade de massas. Aliás, nota-se isso no primeiro ciclo de formação. E podemos dizer também que o Processo de Bolonha (acordo assinado por 29 países da União Europeia com o objetivo de unificar o ensino superior no continente), ao criar, no ensino superior português e europeu, três ciclos – o primeiro, licenciatura; o segundo, mestrado; e o terceiro, cursos avançados, de doutoramento –, consagra um pouco essa universidade de massas. Claro que essa massificação é dada sobretudo no primeiro ciclo. A universidade tem, claramente nesse ciclo inicial, assumido muitas características de escola de massas. E isso tem muitas implicações, claro.

JUSP – Essas implicações estão associadas às três características que o senhor assinala na escola de massas: heterogeneidade humana, uniformidade curricular e complexidade organizacional?

Formosinho – Eu diria que têm relação com pelo menos duas dessas características. A heterogeneidade humana é evidente, hoje, na universidade. Aliás, os professores universitários queixam-se, e quase sempre se queixaram, de que os alunos não são como eram há tempos atrás, como vinham antes. Mas agora há de fato uma heterogeneidade muito maior do ponto de vista social, de interesses e de motivações. Vir para a universidade não é só estar a ter acesso a aulas. É também sair de casa pela primeira vez, é gerir a vida autonomamente, até em níveis financeiros. É, enfim, ter maior liberdade de ação. Portanto, há um outro conjunto de experiências que marcam essa heterogeneidade. Por sua vez, a complexidade organizacional é evidente também. A universidade tem claramente o ensino de massas no primeiro ciclo, mas depois o ensino se torna especializado, sobretudo no doutoramento. E como é que se administra e se concilia isso com as vertentes de ensino, investigação e extensão? É complexo. E esse é claramente um problema atual da universidade. Por fim, eu acho que a uniformidade curricular não está tão evidente na universidade atual.

JUSP – Podemos dizer que um elemento importante do Protocolo de Bolonha é essa tentativa de uma uniformidade curricular?

Formosinho – Para Bolonha tem que haver, se não uma uniformidade, pelo menos uma equivalência clara do ponto de vista curricular no nível da União Europeia. Claro, já há uma uniformidade que leva à organização do ensino superior em três ciclos, e isso leva a outra uniformidade em termos de graus: pelo menos as profissões têm uma formação que é muito mais comum. Portanto, para poder atender ao objetivo de Bolonha, necessita-se que haja uma uniformidade muito maior na União Europeia. E, por consequência, tem que haver uma maior uniformidade curricular do que é exigido a um jurista, a um médico, a um professor etc.

JUSP – O senhor elabora uma teoria para a formação de profissionais de desenvolvimento humano, assinalando que ela deveria enfatizar um conhecimento pluriuniversitário, baseado numa aprendizagem decorrente das práticas sociais e do diálogo entre a escola e a sociedade. Quais as implicações de Bolonha para a formação desses profissionais?

Formosinho – Se nós pudermos aproveitar o esquema de Bolonha para pensar nisso, vemos claramente que há uma abertura, uma sensibilização à formação de profissionais de desenvolvimento humano. Em termos meramente teóricos, essa formação pode começar logo no primeiro ciclo, porque nessa etapa o ensino é mais aberto, podendo haver várias disciplinas comuns para várias formações. Isso porque são muitas as profissões que estão inseridas entre as de desenvolvimento humano, não são só os professores. Técnicos de serviço social, por exemplo, e outros tipos de profissionais que estão nessa classificação podem ter algum tipo de formação comum que os sensibilize para esses aspectos do conhecimento pluriuniversitário, das práticas sociais e do diálogo.

JUSP – O senhor tem experiência também na articulação entre comunicação e educação. Educar para as mídias é um caminho para superar os efeitos da escola de massas?

Formosinho – Sim, penso que sim. Ao pensar uma educação para as mídias, nós estamos perfeitamente mergulhados numa certa compreensão da sociedade. Na sociedade atual, nós não podemos compreender as mídias sem compreender a sociedade e, ao mesmo tempo, não podemos compreender a sociedade sem compreender as mídias. Portanto, a educação para as mídias é uma parte importantíssima da educação atual. É óbvio que hoje a escola tem uma competição muito difícil com as mídias. Se recuarmos 80 ou 70 anos, em Portugal, vamos ver que em 1940, por exemplo, o manual da escola era o único livro que alunos do ensino primário ou fundamental tinham em casa. Não havia televisão e poucos tinham acesso ao rádio. Hoje, de fato, isso mudou radicalmente. A escola vê que há formas muito mais poderosas e influentes em termos de transmissão de comportamento. A televisão, por exemplo, é muito mais poderosa, tem imenso poder sobre os jovens. Portanto, a escola vai ter que pensar como articular essa questão das mídias para a educação e saber usar instrumentos mais interessantes. Por exemplo, quem quiser saber sobre vida animal tem vídeos com muito mais impacto do que os recursos que a escola usa. E a educação para as mídias, evidentemente, insere-se cada vez mais na educação, de maneira que educar para as mídias é educar para a vivência social. E essa vivência não se faz sem as mídias.

JUSP – O senhor fala de quatro dimensões da formação de professores – a intelectual, a técnica, a ética e a relacional – e diz que a dimensão ética e a relacional precisam ser enfatizadas na formação do profissional de desenvolvimento humano. Isso é coerente com os valores da sociedade de mercado?

Formosinho – Não muito, infelizmente. É na dimensão técnica e intelectual que as profissões de desenvolvimento humano diferenciam-se claramente. E é nas dimensões ética e relacional que se consegue perceber que elas fazem parte de um mesmo tipo de profissão. E, portanto, esse é um aspecto muito importante se considerarmos que o que eles têm em comum são, na base, as dimensões ética e relacional. É evidente que os professores e a organização da universidade têm uma ética e transmitem-na. Ela pode ser transmitida objetivamente por várias dinâmicas, dentro do espaço, pelos professores e até pela universidade, óbvio. Mas na nossa sociedade existem claramente vários conflitos éticos, presentes nas próprias atividades do dia a dia das profissões. As sociedades capitalistas têm, mais ou menos, a lógica de que, no fundo, os fins justificam vários meios. Por isso há outra ética, claro, que deve ser transmitida nesses cursos, que é a ética da responsabilidade, uma ética de valores em que nem tudo é possível. Mesmo que os fins sejam positivos, nem tudo é possível.

JUSP – O senhor tem um outro conceito, o do superprofessor. Quando a universidade, de uma forma geral, investe sobretudo nas dimensões técnica e intelectual, será que ela está tentando formar um superprofissonal?

Formosinho – Claro que a formação de um profissional tem uma dimensão de estágio de avaliação profissional em ação, onde, aliás, a maior parte das questões técnicas, éticas e relacionais surgem. No caso da formação de professores – e há outras profissões em que acontece o mesmo –, há questões relacionais que só podem ser diagnosticadas quando o professor está em relação com as crianças, porque nas aulas teóricas isso não é possível. Mas o problema é que nas universidades cada vez tem que se fazer mais com menos recursos. E tudo o que é avaliação de desempenho profissional no contexto de trabalho ou mesmo de estágio consome muita mão-de-obra. A universidade não tem dinheiro para isso. Além disso, há também o interesse da universidade em não valorizar determinados aspectos relacionais porque não tem maneiras de os avaliar. E eu diria que o que está por trás, na maior parte das vezes de forma implícita, é que isso vai ser julgado adiante, na profissão.

JUSP – Ao falar da formação de professores, o senhor critica o discurso do superprofessor, que é utópico, normativo e que transforma as funções normativas da escola em obrigações morais e individuais do professor. Podemos falar em um discurso do superjornalista e considerar que ele transforma as funções da imprensa em obrigações do jornalista?

Formosinho – No jornal, há jornalistas, mas também há editoriais e há interesses. Portanto, imagine que uma reportagem está falando sobre o bullying, por exemplo, de uma forma sensacionalista. Isso pode acontecer por várias razões, desde porque o jornalista quer ter algum protagonismo, por uma lógica de denúncia ou para dar conhecimento de uma dada situação. Seja como for, há outros órgãos no jornal que têm que fazer a triagem em relação a isso. O jornal não é apenas um conjunto de jornalistas. Portanto, a responsabilidade organizacional e social é do jornal, dos seus órgãos. Aliás, eu diria que a grande diferença de qualidade entre muitos jornais está exatamente no exercício da responsabilidade social não só por parte dos jornalistas, mas também por parte dos seus diretores e órgaõs editoriais. Um bom jornal não pode atribuir ao jornalista todas as responsabilidades. Na imprensa há um conjunto de responsabilidades que deve ser exercido por todos. O mesmo ocorre na escola. Por exemplo, o bullying é muitas vezes um exercício silencioso. Todos nós, que temos experiência em escolas, a uma dada altura notamos quando um aluno está sempre a provocar e a chatear um outro, mesmo que isso seja feito silenciosamente. E quando o professor diagnostica isso, há um limite até onde ele pode intervir, mas há um momento em que essa intervenção não é mais responsabilidade só do professor. A responsabilidade tem que ser assumida pela escola enquanto organização. Aliás, nas organizações complexas, os profissionais têm de saber atuar, mas elas também têm que assumir responsabilidades.

Eu liofilizo, tu liofilizas

Enio Moraes Júnior
Imagem: http://www.nescafe.com/
 
As palavras e os encontros têm magia. Liofilização. Adorei essa palavra, foi paixão a primeira vista. Ouvi pela primeira vez da boca de uma amiga que disse que provavelmente eu já conhecia o seu significado das aulas de química. Acontece que sempre fui muito mau aluno nas disciplinas das Ciências Naturais, a que eu costumava me referir como se fosse uma tríade que agia contra mim durante a vida escolar: física-quimica-e-mateMÁtica. Assim, não estranhei que, se é que eu a conhecia, não lembrasse seu significado.

Precisei de um encontro com alguns amigos químicos para decantar melhor essa palavra. Liofilização! Achei a palavra tão bonita que desceu mais suave no meu paladar do que um bom vinho português que eu estava bebendo naquela tarde de domingo. “Liofilizar é transformar algo líquido em pó”, disse um deles. “Nescafé”, disse outro. “No laboratório fazemos isso”, disseram também. “Se você quiser, poderá ir lá conhecer como funciona”, propôs outro.

Mas mais do que conhecer, de fato, qual o significado daquela química, a mim me interessava mais tergiversar sobre a questão, filosofar sobre a possibilidade de algo concreto, sólido, poder virar pó, esvaecer.

Incrível maravilha da química! O vinho descia mais suave ainda. Adorava tudo, cada explicação, cada imaginação. Comemorei a possibilidade de ver o processo, mas adorei sobretudo a palavra. Enquanto aquele grupo de amigos falava das possibilidades liofilizicistas, fiquei em silêncio, conjugando o verbo: Eu liofilizo. Tu liofilizas. Ele liofiliza. Mas seria possível liofilizar gente, pessoas? É possível liofilizar os amores, as paixões?

Nós liofilizamos, vós liofilizais, eles liofilizam. Comecei a viajar numa liofilosofia. Pensei o quanto essa palavra é rica, o quanto a simples ideia, tão simples, de uma reação química pode ser rica, despertar pensamentos e possibilidades.

Se eu pudesse liofilizar alguém, quem eu liofilizaria? De quem eu decantaria toda a água e transformaria em pó? Com que objetivo? Consumir depois, quando eu quisesse? Consumir como? Comer, beber, amar? Mas teria que antes diluir na água… Nossa, quanto poder, quanta responsabilidade! Quanta coisa uma palavra pode trazer a tona…

Liofilizar pensamentos, emporificar o pensamento para pensá-lo depois. Seria possível? Isso desafiaria até a própria Filosofia. Mais um gole de vinho. Enquanto a bebida descia, subia à mente a lembrança da água, usada por filósofos gregos como alegoria para pensar o tempo. Heráclito era o filósofo triste porque olhava para a água do rio e entristecia-se porque aquela água que passava ali jamais voltaria a passar novamente.

Demócrito era o filósofo alegre, que ria. Mas ria de tristeza e o riso tinha a mesma razão do choro de Heráclito: a certeza de que a água não voltaria. E se eles liofilizassem a água? E se eles liofilizassem o tempo? E se o tempo pudesse ser parado, suspenso, liofilizado? Se o tempo pudesse ser estocado em vidrinhos de Nescafé, seríamos mais felizes?

Continuei pensando em quem eu liofilizaria, como e porque. Pensei também se alguém me liofilizaria, com e porque. Uma nova rodada de vinho, despertada pelo trincado do gargalo da garrafa na minha taça, fez-me acordar da viagem solitária.

Esse vinho poderia ser liofilizado?, perguntei aos meus amigos químicos. Eles me olharam como se estivesse entendendo o convite para a minha viagem. Mal tiveram tempo de pensar numa resposta para a pergunta provavelmente absurda, continuei: e as pessoas, e os amores, e o tempo? Tomamos mais vinho para maturar aquelas questões. Resolvemos nos fotografar. Transformávamos aqueles instantes para contemplarmo-lo depois. Sem perceber, executávamos uma liofilização daquele vinho e daqueles momentos. Liofilização. As palavras e os encontros têm magia!

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Crônica dos pa-ra-le-le-pí-pe-dos

Enio Moraes     Júnior
Imagem: http://4.bp.blogspot.com/



Palavra igual àquela, jamais havia ouvido ou pronunciado. O esforço para soletrá-la, então, desafiava sua inteligência de menino. E se achava inteligente! As professoras insistiam para que ele conseguisse soletrar e depois das aulas com a Anilde, com a Ana e com a Rosângela, conseguiu: pa-ra-le-le-pí-pe-dos. Paralelepípedos. Ufa!
Pouco tempo depois descobriu também que levava um acento no “I” porque era uma palavra pro-pa-ro-xí-to-na. Proparoxítona. Esta já pronunciava com facilidade! Os paralelepípedos o haviam deixado seguro e confiante para o soletramento de palavras novas e, até então, de pronúncia complicada.
Numa certa altura, deu-se conta que a regra de acentuação de paralelepípedos servia também para proparoxítona. Daí em diante foram tantas as associações entre as palavras, as regras e o mundo a sua volta que jamais parou de querer aprender.
No entanto, havia uma associação prosaica entre os tais paralelepípedos e o universo daquele menino de interior. De alguma forma, ele achava que aqueles cubos pesados que forravam as ruas, e que, vez por outra, ele usava para apoiar ouricuris e quebrá-los com uma pedra menor, só existiam em Penedo, a cidade do interior de Alagoas, no Nordeste do Brasil, onde nascera e morava.
Achou até que o “P” de Penedo devia-se aos tais paralelepípedos. E elucubrava uma razão técnica para isso: sabia que o nome da cidade era derivado de um tipo de rochedo que existia na região. Imaginava que alguém tivesse pego pedaços do rochedo, esculpido em cubos, e coberto as ruas.
Entre uma descoberta e outra, exultava quando o pai ou a mãe conduziam o carro da família pelas ruas de Penedo cobertas por aqueles cubos… A irregularidade característica do tipo de calçamento fazia com que, de vez em quando, o automóvel solavancasse e cada salto era uma diversão. Era um prazer soletrar cada uma das sete sílabas a cada sobressalto: pa-ra-le-le-pí-pe-dos. E ainda torcia para que o solavanco maior coincidisse com o “PÍ”, a sílaba tônica que colocava a sua palavra querida na lista dos proparoxítonos.
Às vezes os pais traziam no carro os irmãos ou as avós, mas o menino ria-se baixinho, para não despertar suspeitas da sua gostosa e secreta viagem. Sair do Largo de Fátima, passar em frente ao Diocesano, descer pelo Rosário Estreito, passar pela rua da Igreja do Rosário, pelo Gabino Besouro, pela Catedral e chegar ao Cais era uma aventura pa-ra-le-le-pi-pe-dística que ele guardava para si como um prezeroso segredo!
Pouco tempo depois, descobriu que outras cidades tinham também os tais paralelepípedos. Não ficou decepcionado. Gostou! Achou que poderia viver em qualquer uma delas. Sentiu que poderia encontrar os cubos de Penedo onde quer que fosse. E foi.
Cresceu e descobriu também que nem todo lugar tem paralelepípedos de verdade, alguns lugares têm ruas lisas, quase encarpetadas. Mas mesmo nesses lugares continuava a sentir na alma os solavancos causados pelos velhos cubos que conhecera na infância.
Foi então que se deu conta que paralelepípedos eram, além dos cubos, sentimentos seus. Eram saltos no peito a cada descoberta feita, a cada conquista realizada, a cada alegria experimentada. Mesmo depois de crescido, jamais esqueceu esta lição. Vez por outra, onde quer que ele esteja, as descobertas e as surpresas da vida lhe solavancam a alma. Então ri baixinho e não se contém: pa-ra-le-le-pí-pe-dos!