terça-feira, 15 de maio de 2007

Linhas para pensar o Jornalismo

Mosteiro de São Bento (ao fundo), onde o Papa esteve hospedado em São Paulo (Foto: Enio Moraes Júnior)

Enio Moraes Júnior

A palavra jornalismo vem do italiano giornale, que nos remete à palavra “jornada”. Assim, o jornalismo traz as informações de uma jornada (um dia, um período), úteis à vida em sociedade. Ele está, portanto, associado a um “instinto de percepção” (KOVACH; ROSENSTIEL) dos indivíduos, capaz de tornar as pessoas mais próximas.
Por sua vez, a notícia (news), a novidade, aquilo que as pessoas desconhecem é, assim, a essência do jornalismo. Ele tem sentido na medida em que acrescenta informações capazes de fazer as pessoas mobilizarem-se em função do bem comum e da vida em sociedade.
Ao trazer o novo, o jornalismo não espelha desinteressadamente a realidade. Ao contrário, ele a reconstrói. Por isso, o jornalismo não é imparcial nem objetivo como propunha a teoria do espelho que surgiu no século XIX para explicá-lo como “espelho” da realidade. Ao contrário, sua essência é a construção dos fatos (TRAQUINA).
Aliás, jornalismo é fundamentalmente interesse, seja do jornalista ou da empresa. No entanto, ele só tem sentido social se agendar – teoria do agendamento – informações que têm por base os direitos humanos, a democracia e a cidadania. Fora disso, há espetáculo ou demagogia da objetividade e da imparcialidade, não mais jornalismo. Como adverte o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.
Os estudos contemporâneos têm trazido suas colaborações para o jornalismo atual face à presença das novas tecnologias de comunicação. Muniz Sodré (2002; 2003) nos fala que a comunicação contemporânea está a favor de uma antropotécnica política. A partir daí, o jornalismo pode ser interpretado como uma técnica de dominação política do homem que implica numa neobarbárie, forma de dominação não mais por meio da morte do corpo, da uso da força física, como pressupõe a barbárie, mas dominação da alma.
Para Barber (2003), a privatopia – a privatização dos sonhos da Utopia a que se referia Morus em seu clássico livro – é uma das provas desse processo. Sobre ela atua uma espécie de videologia em que a imagem é colocada, em si, como ideologia. Tudo isso, para Bertman (1998) se torna possível numa hipercultura, entendida como a cultura da pressa, do descartável, do raso.
Por outro lado, alguns autores têm se mostrado otimistas como as possibilidades trazidas pelas novas tecnologias para a comunicação social e o jornalismo. Empolgado com a possibilidade dessas teconolgias engendrarem uma nova forma de democracia, Lévy (2000; 2003) nos fala de uma possível ciberdemocracia. Para Morin (2000; 2003), esse talvez seja o caminho de uma antropolítica – a substituição da política da barbárie e do lucro por uma política da humanidade – que pode, finalmente, realizar um civismo planetário, constituindo uma cidadania global.

O Papa e o jornalismo

Na grande mídia brasileira, o agendamento da visita do Papa às cidades de São Paulo e Aparecida (maio de 2007) mostrou a atuação de uma imprensa que reproduz uma antropotécnica neobárbara de dominação de uma minoria de brancos e ricos (e católicos) sobre uma maioria de negros e pobres. As imagens, assim como os shoppings, confirmam o espaço (público e irrestrito) da igreja como uma privatopia e reforçam as performances videológicas da dominação. Ao mesmo tempo, a abundância de informação, o acompanhamento simultâneo das ações de Bento XVI pela televisão e pela internet confirmam o jornalismo a serviço de uma sociedade hiperculturalizada em que a informação é apressada, rasa e espetacular.
Por outro lado, os acessos, comentários e descontentamentos com a cobertura na internet – em blogs ou espaços alternativos – reforçam a perspectiva de uma ciberdemocracia, em que a participação social e a opinião pública podem destoar das significações trazidas pela grande mídia. Este aspecto reafirma a possibilidade de uma antropolítica, a partir dos meios de comunicação, levando-nos a acreditar que somente a descentralização da produção da informação e a educação para a cidadania podem levar o jornalismo ao cumprimento do seu papel com um civismo planetário.

Referências bibliográficas
BERTMAN, Stephen. Hipercultura. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. 10º ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
KOVACH, Bill; ROSENSTIEL. Elementos do jornalismo São Paulo: Geração Editorial, 2004.
LÉVY, Pierre. Ciberdemocracia. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
_____. Pela ciberdemocracia. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
BABER, Benjamim. Cultura McWorld. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.
_____. Por uma mundialização plural. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
SODRÉ, Muniz, Antropológica do Espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.
_____. Globalização e neobarbárie. IN: MORAES, Dênis de (Org.). Por uma Outra Comunicação, Rio de Janeiro, Record: 2003.
TRAQUINA, Nelson. O Estudo do Jornalismo no Século XX. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Balas não matam, quem mata são pessoas

Enio Moraes Júnior e Murilo Jardelino

Bala perdida mata menina de 12 anos no Rio: Alana Ezequiel foi baleada durante operação da PM após deixar irmã na creche; 2 jovens suspeitos de tráfico morreram na ação", traz o caderno Cotidiano da versão digital da Folha de S.Paulo, de 06 de março.
"Bala perdida mata mulher em São Paulo: vendedora foi atingida durante perseguição de PMs a dois jovens que iriam assaltar banco; é a 5ª vítima em 10 dias", informa-se na página 4 do caderno Metrópole do jornal O Estado de S.Paulo, de 9 de março.
Falar em "bala perdida" soa muito eufemístico. No futebol diríamos que uma "bola perdida" é uma jogada errada, obviamente cometida por alguém e com conseqüências para o placar final da partida. No mínimo, o artilheiro deixou de marcar um gol. Além disso, seja um escanteio ou qualquer outra jogada, uma bola perdida por um time é uma bola ganha por outro. Assim, alguém assume a responsabilidade por essa jogada. Afinal é uma disputa esportiva, muitas vezes exacerbada. No caso das balas perdidas, no entanto, a questão é mais séria, alguém também dispara a bala.
O problema da violência não é apenas uma questão de que pessoas estão morrendo, mas também de pessoas que estão matando. Esse apagamento refrata-se no discurso – hegemônico – dos que defendem a redução da maioridade penal e o rigor nas apurações de homicídios, muitas vezes encampado pela mídia nacional; deixa incompletas as discussões sobre violência e esconde que muitas crianças e adultos que hoje matam são produto de uma sociedade que não consegue pensar-se de forma ampla, democrática. Como afirma Marilena Chauí (2000: 564):

Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

Para a autora, a sociedade brasileira é extremamente segregacionista. Se, por um lado, nos choca o absurdo das mortes por balas perdidas, por outro, deveríamos nos chocar e nos preocupar também com as mãos que seguram essas armas e discutir nossa responsabilidade nesses episódios. Mas a abertura da matéria sobre Alana, a menina de 12 anos morta no Rio, acentua os preconceitos de uma população que se comove apenas com um dos lados da questão:

Uma menina de 12 anos foi morta ontem no morro dos Macacos, em Vila Isabel (zona norte do Rio), atingida por uma bala perdida durante operação da Polícia Militar. Outros dois adolescentes de 16 anos, apontados pela polícia como criminosos, também foram mortos. (GRIFOS NOSSOS)

Considerando o fenômeno da designação, apontada por Rajagopalan (2003: 84), podem-se fazer algumas conjecturas. Segundo o autor:

Sabemos que toda notícia, toda reportagem jornalística, começa com um ato de designação, de nomeação. Aliás, a própria gramática tradicional nos ensina que é preciso primeiro identificar o sujeito da frase para então dizer algo a respeito ou, equivalentemente, predicar alguma coisa sobre o sujeito já identificado.(...)É, no entanto, no uso dos nomes próprios – ou, melhor dizendo, na fabricação de novos termos de designação para se referir às personagens novas que surgem no cenário e aos acontecimentos novos que capturam a atenção dos leitores – que o discurso jornalístico imprime seu ponto de vista.

Na matéria da Folha, a grande tragédia é que a menina foi morta. E quanto aos outros adolescentes? "Também foram mortos". E daí? Isso é natural, normal? É aceitável só porque eles estavam armados ou porque a própria designação – "criminosos" – já os incrimina?
As notícias que tomamos como referência são apenas parte de muitos, muitíssimos outros casos. E certamente um dos problemas centrais dos enunciados jornalísticos seja designar reforçando preconceitos, trazendo à tona a carga ideológica da severa divisão de classes, esquecendo alguns princípios da cidadania e da democracia por que deve orientar-se o jornalismo.

Além das balas - Esse tipo de designação, que também encerra em si uma forma de violência, uma espécie de violência de caráter lingüístico, é freqüente em outros momentos da cobertura policial. Nas últimas notícias envolvendo o PCC – Primeiro Comando da Capital –, de São Paulo, a grande imprensa não se refere mais à sigla, mas tem utilizado expressões como "facção criminosa", uma clara tentativa de não reforçar – por meio da designação – a marca e a força que o grupo lamentavelmente conquistou. Ao mesmo tempo, os seus integrantes são sempre designados como bandidos, criminosos, uma estratégia para restringir o grupo àqueles que estão encarcerados.
Por outro lado, políticos, empresários e celebridades sempre são "acusados". Mesmo quando a quase sempre morosa Justiça sentencia-os, eles raramente chegam a ser designados como criminosos. Retomando a avaliação sobre o caráter segregacionista da nossa sociedade apontado por Chauí, fica claro que as designações reforçam o autoritarismo e a violência da nossa sociedade.
Há anos a imprensa nacional vem registrando mortes, assassinatos e homicídios na cena urbana brasileira. Segundo o programa semanal Fantástico, da Rede Globo, 170 pessoas foram atingidas por bala perdida na região metropolitana do Rio de Janeiro em 2006, implicando em 44 mortes. Também segundo a imprensa, até o final de março deste ano, foram mais de 30 vítimas de bala perdida no Rio, sete fatais.
Se por um lado está em dia com os registros, o jornalismo que se seduz por números, pânico e espetáculo tem muitas vezes deixado de problematizar que não existem, de fato, balas perdidas e que balas não matam, quem mata são pessoas.
Ao preferir preencher o argumento "agente" do verbo matar com o argumento "instrumento", aquilo de que um agente se serve para realizar algo, ou seja, ao deslocar para a posição de sujeito sintático da oração esse instrumento – bala perdida – produz-se o apagamento a que nos referimos anteriormente.
Isto é, o que a imprensa tem deixado de problematizar é o fato de nós, brasileiros, por negligência, comodismo ou omissão, estarmos segurando as mãos das crianças e jovens que disparam as balas que matam. Assim, a metonímia da bala assassina serve apenas para eximir o Estado de responsabilidades que são suas e, finalmente, para confortavelmente eximir a nós, brasileiros, maiores, informados, cidadãos, de responsabilidades que são nossas.

Matérias citadas
NOGUEIRA, Ítalo. Bala perdida mata menina de 12 anos no Rio. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo. Caderno Cotidiano. 06 de março de 2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0603200708.htm Acessado em: 06 de março de 2007.
DECAUAZLLIQUÁ, José. Bala perdida mata mulher em São Paulo. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Metrópole, pg. 04. São Paulo, 09 de março de 2007.
Bibliografia

Referência bibliográfica
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia: São Paulo: Ática, 2000.
RAJAGOPALAN, K.. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003.