terça-feira, 11 de março de 2008

A vida simples de algum lugar




Os cavalos, parte do trabalho de Capilé: o cotidiano do interior traduzido no artesanato
(Foto: Enilson Vieira Moraes)


Enio Moraes Júnior

Ofício que “eles ‘aprendero’ com os pais e ‘ensinaro’ pros fios”, as marcas da cultura ceramista estão por toda a cidade. Quilos e quilos de argila úmida transportada em dezenas de carroças puxadas por jegues ou cavalos circulam pela cidade enquanto as janelas das casas se abrem, muitas delas já com esculturas à mostra, para mais uma sexta-feira de trabalho e comércio. Assim é o amanhecer do dia, ainda cedo, pouco mais de cinco da manhã, na pacata cidadezinha do Nordeste brasileiro.
Santana do São Francisco é uma pequena cidade do interior sergipano, com uma população estimada em 6.323 habitantes (dados do IBGE) que vivem basicamente dos recursos oferecidos pelas águas do rio São Francisco. A cidade, que até 1992 chamava-se Carrapicho, está localizada na região do Baixo São Francisco e desenvolve atividades como a pesca e a agricultura, mas “tem nada” que a faça mais conhecida nacionalmente que a sua produção artesanal de cerâmica de barro.
Sandro de Zequinha, Capilé, Maria, José, João e mais uma dezena de artesãos colocam, de fato, a mão na massa e dela criam, esculpem e reinventam, cada um a seu jeito, com seu talento, as suas próprias peças.

- Mas ‘coidado’, moço!, advertiu-me uma senhora robusta, de roupas simples, mas bem arrumada, a quem pedi informações sobre os ceramistas da cidade. “É que aqui tem muito ‘cabra’ que gosta de copiar ‘as invenção’ dos outros. E isso já me disseram que ‘num’ é arte”.

Numa das primeiras casas visitadas, vejo que crucifixos, imagens de Nossa Senhora Aparecida e de São Jorge dividem a mesma prateleira com esculturas de Oxum e de Oxossi. Todos eles, por sua vez, num mesmo móvel ao lado de canecas de cerveja cinzeiros, vasos para flores e oferendas.

- Bata palma aí que ela aparece, disse a senhora que havia advertido sobre os copiadores e me acompanhou por todo percurso que fiz na cidade, embora não quisesse dizer o nome ou o que fazia ali.
- Acho que não tem ninguém. Saíram e deixaram a porta aberta. Como pode?
- Aqui ‘tem problema isso não, homi’. Depois você volta.

Assim é a vida em Santana, sem grandes segredos. Alguns cidadãos ganham a vida com o transporte da argila ou da lenha utilizadas na produção da cerâmica, enquanto outros comercializam o artesanato nas próprias casas, muitas delas transformadas em oficinas. Mas o que chama mesmo a atenção é o trabalho cuidadoso dos artesãos que dão forma à argila e solidificam a história, a beleza e as angústias do povo ribeirinho que vive às margens do São Francisco.

- Ô de casa, chego batendo palmas e anunciando minha entrada casa à dentro.

Concentrado no trabalho de molda das peças, que parece pesado e exige paciência, Sandro de Zequinha olha com a cabeça levemente abaixada e a testa franzida:

- Pois não?

Herdou a profissão de artesão do pai, com quem trabalha em uma das oficinas da cidade. Tem quarenta anos de idade, que parecem bem menos, embora isso possa contradizer as possibilidades de danos físicos de um trabalho num local abafado e insalubre. “É que aqui eu trabalho com a natureza”, justifica.
Sandro passa cerca doze horas por dia moldando peças que depois de trabalhadas são colocadas em um forno à lenha para queimar e finalmente serem pintadas. “Não tem barro melhor do que esse daqui não. Ele é macio, olhe só” – diz, revirando a argila. “É bom para queimar e para pintar. No Brasil não há igual”.

- Mas o que você conhece do Brasil; da argila dos outros lugares?
Ele desconversa:
- Nada, quer dizer, quase nada, o pessoal é que fala...

Meio ambiente - Embora emblemática da relação que o homem ainda pode manter com a natureza, a relação entre o São Francisco e a população de Santana do São Francisco tem hoje uma grande ameaça: a degradação do rio e do meio ambiente. O receio dos ambientalistas é que esse processo comprometa a cultura e a sobrevivência de populações que utilizam o seu potencial.
Mas segundo a Prefeitura, que contabiliza que cerca de 60% da população vive do artesanato, está em negociação a elaboração de um projeto em parceria com órgãos como o Departamento de Engenharia Agronômica (DEA) da Universidade Federal e Sergipe e o Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) para a plantação de eucalipto para ser usado na queima do barro nas proximidades do município. O objetivo é baratear os custos e minimizar as conseqüências da extração de lenha das matas ciliares.
“Dizem que isso aqui ‘tá tudo acabando’, mas ‘sei não’, a gente sempre dá jeito de seguir na caminhada”. Mas o fato é que de todas as implicações da produção artesanal de Santana, o impacto ambiental da retirada de argila também seja uma preocupação presente entre os artesãos locais. Segundo o presidente da Associação de Artesãos de Carrapicho, Edílson Fortes, há, sim, retirada da lenha de áreas de preservação. “Temos receio da situação que estamos criando para nós e para o rio, mas estamos trabalhando em cima das nossas necessidades”, diz com a experiência, a sobriedade e a preocupação de quem, aos 55 anos, conta também outros 55 de lida com a cerâmica e a argila do São Francisco.
Edílson está otimista com a parceria entre a Prefeitura e os professores da Universidade. Acha que tudo pode ser resolvido e que os artesãos podem colaborar. Despeço-me e volto à casa em que havia ido no começo da manhã.

- Bata palma de novo que ela aparece.

Um jovem senhor, de olhar simples mas passos firmes, vem até a parte da frente da casa. Wilson de Carvalho, o Capilé, tem 38 anos e é provavelmente o mais conhecido artesão santanense. Hoje, com o uso da lenha, ele garante uma renda mensal de 600 reais é contra a devastação e a favor dos projetos de reflorestamento de eucaliptos, mas reclama da burocracia. “Minha preocupação é que esse projeto fique engavetado. Se não for tomada uma posição de maior respeito e consciência, a idéia não vai adiante”.
Gostei da sua ponderação, gostei do povo santanense e da sua arte. Do lado de fora da porta, o movimento das pessoas nas ruas havia acalmado, já era quase hora do almoço e lembrei-me que uma das regras das cidades do interior é refeição com hora marcada.

- Interessante esse povo daqui, esse povo do barro!, observei pensando que falava comigo mesmo, mas tive resposta:
- Tudo isso é coisa que “eles ‘aprendero’ com os pais e ‘ensinaro’ pros fios, respondeu-me a senhora que ainda permanecia atrás de mim.

Olhei com um ar de curiosidade, e ela continuou:

- Assim é a vida de todo lugar, ‘né não’?, falou batendo em retirada, com as mãos cruzadas sobre a região lombar, como fazem as pessoas simples depois de uma tarefa concluída. Era como se a minha surpreendente companheira de reportagem soubesse que o nosso trabalho tivesse terminado.
Era quase meio-dia e o sol insistia em brilhar. Se assim é a vida em todo lugar eu não saberia, àquela hora, argumentar, mas certamente gostaria que a vida naquela cidadezinha às margens do São Francisco continuasse a ser vivida assim, com a sabedoria, a coragem e a simplicidade daqueles artesãos e daquela senhora.

(Matéria reeditada a partir de reportagem original deste autor publicada na revista Com Ciência Ambiental).

Um comentário:

JULIANA AGUIAR disse...

professorrrrrrrrrrr ... segui seu conselho e fiz um blog ... da uma olhada julianaacarneiro.blogspot.com

bjoquinhas