quinta-feira, 3 de maio de 2007

Balas não matam, quem mata são pessoas

Enio Moraes Júnior e Murilo Jardelino

Bala perdida mata menina de 12 anos no Rio: Alana Ezequiel foi baleada durante operação da PM após deixar irmã na creche; 2 jovens suspeitos de tráfico morreram na ação", traz o caderno Cotidiano da versão digital da Folha de S.Paulo, de 06 de março.
"Bala perdida mata mulher em São Paulo: vendedora foi atingida durante perseguição de PMs a dois jovens que iriam assaltar banco; é a 5ª vítima em 10 dias", informa-se na página 4 do caderno Metrópole do jornal O Estado de S.Paulo, de 9 de março.
Falar em "bala perdida" soa muito eufemístico. No futebol diríamos que uma "bola perdida" é uma jogada errada, obviamente cometida por alguém e com conseqüências para o placar final da partida. No mínimo, o artilheiro deixou de marcar um gol. Além disso, seja um escanteio ou qualquer outra jogada, uma bola perdida por um time é uma bola ganha por outro. Assim, alguém assume a responsabilidade por essa jogada. Afinal é uma disputa esportiva, muitas vezes exacerbada. No caso das balas perdidas, no entanto, a questão é mais séria, alguém também dispara a bala.
O problema da violência não é apenas uma questão de que pessoas estão morrendo, mas também de pessoas que estão matando. Esse apagamento refrata-se no discurso – hegemônico – dos que defendem a redução da maioridade penal e o rigor nas apurações de homicídios, muitas vezes encampado pela mídia nacional; deixa incompletas as discussões sobre violência e esconde que muitas crianças e adultos que hoje matam são produto de uma sociedade que não consegue pensar-se de forma ampla, democrática. Como afirma Marilena Chauí (2000: 564):

Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

Para a autora, a sociedade brasileira é extremamente segregacionista. Se, por um lado, nos choca o absurdo das mortes por balas perdidas, por outro, deveríamos nos chocar e nos preocupar também com as mãos que seguram essas armas e discutir nossa responsabilidade nesses episódios. Mas a abertura da matéria sobre Alana, a menina de 12 anos morta no Rio, acentua os preconceitos de uma população que se comove apenas com um dos lados da questão:

Uma menina de 12 anos foi morta ontem no morro dos Macacos, em Vila Isabel (zona norte do Rio), atingida por uma bala perdida durante operação da Polícia Militar. Outros dois adolescentes de 16 anos, apontados pela polícia como criminosos, também foram mortos. (GRIFOS NOSSOS)

Considerando o fenômeno da designação, apontada por Rajagopalan (2003: 84), podem-se fazer algumas conjecturas. Segundo o autor:

Sabemos que toda notícia, toda reportagem jornalística, começa com um ato de designação, de nomeação. Aliás, a própria gramática tradicional nos ensina que é preciso primeiro identificar o sujeito da frase para então dizer algo a respeito ou, equivalentemente, predicar alguma coisa sobre o sujeito já identificado.(...)É, no entanto, no uso dos nomes próprios – ou, melhor dizendo, na fabricação de novos termos de designação para se referir às personagens novas que surgem no cenário e aos acontecimentos novos que capturam a atenção dos leitores – que o discurso jornalístico imprime seu ponto de vista.

Na matéria da Folha, a grande tragédia é que a menina foi morta. E quanto aos outros adolescentes? "Também foram mortos". E daí? Isso é natural, normal? É aceitável só porque eles estavam armados ou porque a própria designação – "criminosos" – já os incrimina?
As notícias que tomamos como referência são apenas parte de muitos, muitíssimos outros casos. E certamente um dos problemas centrais dos enunciados jornalísticos seja designar reforçando preconceitos, trazendo à tona a carga ideológica da severa divisão de classes, esquecendo alguns princípios da cidadania e da democracia por que deve orientar-se o jornalismo.

Além das balas - Esse tipo de designação, que também encerra em si uma forma de violência, uma espécie de violência de caráter lingüístico, é freqüente em outros momentos da cobertura policial. Nas últimas notícias envolvendo o PCC – Primeiro Comando da Capital –, de São Paulo, a grande imprensa não se refere mais à sigla, mas tem utilizado expressões como "facção criminosa", uma clara tentativa de não reforçar – por meio da designação – a marca e a força que o grupo lamentavelmente conquistou. Ao mesmo tempo, os seus integrantes são sempre designados como bandidos, criminosos, uma estratégia para restringir o grupo àqueles que estão encarcerados.
Por outro lado, políticos, empresários e celebridades sempre são "acusados". Mesmo quando a quase sempre morosa Justiça sentencia-os, eles raramente chegam a ser designados como criminosos. Retomando a avaliação sobre o caráter segregacionista da nossa sociedade apontado por Chauí, fica claro que as designações reforçam o autoritarismo e a violência da nossa sociedade.
Há anos a imprensa nacional vem registrando mortes, assassinatos e homicídios na cena urbana brasileira. Segundo o programa semanal Fantástico, da Rede Globo, 170 pessoas foram atingidas por bala perdida na região metropolitana do Rio de Janeiro em 2006, implicando em 44 mortes. Também segundo a imprensa, até o final de março deste ano, foram mais de 30 vítimas de bala perdida no Rio, sete fatais.
Se por um lado está em dia com os registros, o jornalismo que se seduz por números, pânico e espetáculo tem muitas vezes deixado de problematizar que não existem, de fato, balas perdidas e que balas não matam, quem mata são pessoas.
Ao preferir preencher o argumento "agente" do verbo matar com o argumento "instrumento", aquilo de que um agente se serve para realizar algo, ou seja, ao deslocar para a posição de sujeito sintático da oração esse instrumento – bala perdida – produz-se o apagamento a que nos referimos anteriormente.
Isto é, o que a imprensa tem deixado de problematizar é o fato de nós, brasileiros, por negligência, comodismo ou omissão, estarmos segurando as mãos das crianças e jovens que disparam as balas que matam. Assim, a metonímia da bala assassina serve apenas para eximir o Estado de responsabilidades que são suas e, finalmente, para confortavelmente eximir a nós, brasileiros, maiores, informados, cidadãos, de responsabilidades que são nossas.

Matérias citadas
NOGUEIRA, Ítalo. Bala perdida mata menina de 12 anos no Rio. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo. Caderno Cotidiano. 06 de março de 2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0603200708.htm Acessado em: 06 de março de 2007.
DECAUAZLLIQUÁ, José. Bala perdida mata mulher em São Paulo. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Metrópole, pg. 04. São Paulo, 09 de março de 2007.
Bibliografia

Referência bibliográfica
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia: São Paulo: Ática, 2000.
RAJAGOPALAN, K.. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade e a questão ética. São Paulo: Parábola, 2003.

Um comentário:

Janaina Pereira disse...

olá, professor, tudo bem? sou aluna do jornalismo da uninove e já ouvi falar muito bem de você. mas acho que não está mais lá, não é? estou indo para o sexto semestre, estudo na vergueiro e nunca fui sua aluna. mas li vários textos selecionados por você em disciplinas como jornalismo comparado - que tive com o professor Farias. Gostei muito do seu blog, especialmente desse texto. Sou carioca, e este texto tem muito a ver com o que pretendo fazer do meu TCC. Um abraço, Janaina Pereira